Imaginem um Sábado ensolarado, logo pela manhã,
em qualquer Aeroporto Municipal de qualquer cidade do interior.
Mais especificamente, no Aeroporto Municipal de
Americana, em meados dos anos 90.
Amigos dos amigos visitavam hangares de outros
amigos, crianças no playground, famílias, entregas de suprimentos na lanchonete
(Trailer) do Cidão, já esperando o movimento do dia, e o alto consumo de
cerveja no final do mesmo.
Era sempre tudo muito natural.
Em um canto gramado, ao lado do playground, uma
Tribo bastante colorida armava um Circo bastante original.
Qual Tribo?
A dos Paraquedistas, oras!
Paraquedista:
Adjetivo
masculino e feminino, substantivo masculino e feminino
Que pratica paraquedismo, diz-se do indivíduo.
[Militar] Diz-se do sujeito que faz parte de
um grupo determinado de paraquedismo.
[Pejorativo] Informal. Alguém que consegue um
cargo ou benefícios ilícitos utilizando a astúcia ou a negligência dos demais
interessados.
(Essa última é ótima!)
Ué, mas essa não é a definição do dicionário?
Exato!
Eu tenho a minha.
Quer saber qual é?
Paraquedista é aquela pessoa que “cai”.
Pessoa que se utiliza da Lei da Gravidade para
cair, na maioria das vezes, de uma Aeronave.
O Paraquedas, mesmo funcionando direito, sendo bem
utilizado, não “para” a queda. Não de verdade!
Mas voltemos à aquela manhã de Sábado, no Aeroporto
Municipal de Americana.
Enquanto o Circo se armava, eu já tinha estacionado
o charmoso Cessna 182 PT-JVA em frente a bomba de combustível, com a inspeção
externa completa, nível de óleo checado, para o primeiro lançamento das tais
“pessoas que caem”.
Sim, naquela época eu era um orgulhoso e habilitado
(LPQD) Piloto Lançador de Paraquedistas.
Como em quase todos os finais de semana (e muitas
vezes durante a semana) entre os anos de 95 e 98, a minha rotina estava apenas
começando.
Num bom fim de semana, seriam cerca de 30
decolagens!
O JVA:
O Julliet Victor Alpha era um C-182 fabricado em
1963.
O primeiro modelo com a fuselagem larga, com a
janela traseira “omnivision”.
Avião leve, asa de perfil liso, ainda sem o bordo
de ataque STOL, que seria integrado aos 182s somente nos anos 70, quando
começaram à ser chamados oficialmente de Skylane.
O JVA tinha um motor Continental O-470 de 230 Hps,
que provisionalmente, tinha seus cilindros trocados pelos do IO-470 de 260 Hps.
No final da história, com um bom arranjo, isso
rendia uns 245 Hps na decolagem.
Alunos de “static line” no FL065 (4.500 Ft do solo
em SDAI) Sujeitos experientes no FL120 ou no 140 ( 12.000 Ft do Solo!) tudo
isso me rendia uma boa grana no final do Domingo, no fechamento do “Manifesto”.
Era então que se acertavam todas as contas da
semana.
Fácil?
Nem tanto...
O Piloto Lançador de Paraquedistas...
Na verdade, para o Paraquedista, ele é um problema!
É sempre o sujeito cuja principal intenção vai ser
sempre voltar com o avião para o aeroporto.
De preferência, em um só pedaço.
É sempre o cara que vai tentar botar ordem no caos.
E Paraquedistas adoram uma desordem!
Para o Parquedista, o Piloto é um “Mal Necessário”.
Necessário, até que a porta se abra à 10.000 Ft... Depois,
é “Uuhhuuuuu!”, só alegria, toneladas de adrenalina...
E o avião?
E o Piloto?
Ninguém sabe, ninguém viu!
Sabe aquela Loira voluptuosa, ali na plateia do
“Circo”?
Sabe aquela de óculos escuros, que está sempre
olhando na sua direção, entre uma decolagem e outra, enquanto você abastece o
avião, come um eventual sanduíche, e encaminha aqueles Heróis Multicoloridos para
o interior do 182 como se fosse um responsável Motorista de ônibus escolar?
Esquece...
Não é pro seu bico!
Ela está olhando para alguém que por caso, está
perto de você.
Com certeza, para algum daqueles garbosos
cavaleiros de mochila nas costas!
Mesmo que você tivesse tempo, não teria a menor
chance.
Nem com ela, nem com a “gordinha” amiga dela.
Tempo é dinheiro!
Não se distraia...
Outra coisa que nunca vai acontecer:
Você nunca vai decolar com menos de 500 Kg à bordo!
Com menos de 4 de “PQDs”, financeiramente falando,
é melhor nem decolar.
Qualquer marmanjo(a) equipado(a) para um salto de
paraquedas, sempre pesa próximo de 100 kg. Se não atingir esse peso, na mesma
decolagem, sempre vai ter outro marmanjo(a) que vai não só “compensar”, como
vai exceder em algumas dezenas de quilos essa média.
Como muitas outras características inerentes à esse
tipo de operação, essa é só mais uma que remete ao mais pura Lei de Murphy”!
Então a missão estava toda planejada:
Cinco paraquedistas à 10.000 Ft!
Decolagem lucrativa!
Consigo fazer em 33 minutos de chão à chão?
Provavelmente...
Tem outro avião na área, mas ele é meio lerdo...
Faço essa, e se bobear faço a próxima que já está
se organizando.
Uma hora nos tanques pra ficar leve, e a “carga
viva alijável” já acomodada no Wide Body do PT-JVA (...tire a Gordinha amiga da
Loira da cabeça!).
A decolagem era obviamente WOT (Wide Open Throttle!)
com flapes em 10o , que eram recolhidos à 400 Ft com as rotações da
hélice reduzidas para 2.500 RPMs.
À 3500 Ft você chamava a Torre Campinas que
monitorava a sua ascensão até 5000 Ft.
A princípio, o ideal era manter 110 Mph de velocidade
indicada, o que resultaria em preciosos 600 Ft/min até cruzar uns 4.000 Ft.
Passando 5000 Ft a coisa toda era negociada com o
APP São Paulo, até a autorização para o lançamento.
Então, reduzia-se para 100 Mph e os mesmos 600
Ft/min eram mantidos até uns 6000 Ft.
Até uns 9000
Ft, você continuava subindo com 90 Mph, ainda mantendo já com uma certa
dificuldade, a mesma razão de subida.
Acima disso, até 12.000 Ft, mantinha-se 85/80 mph,
nunca menos que isso, até entrar na reta de lançamento, atingindo o OS (Ponto
de Salto).
Às vezes, íamos à 14.000 Ft, o que acabava
acrescentando uns 5 minutos à mais na brincadeira.
O avião chegava nessas altitudes no osso, com a
língua de fora em termos de performance!
16 polegadas de manifold pressure, nem um soprinho
à mais!
Mas porque não cravar nas 80 mph já no início da
subida?
Daria mais de 1000 Ft/min de razão de subida, não?
Sim, daria...
Por uns dois ou três minutos, depois “embarrigava”
e não subia mais!
Outra coisa:
Curvas só pela direita, na subida, sempre que
possível.
Você se apoia no torque da hélice.
Por incrível que pareça, faz diferença no final!
Ninguém me ensinou isso.
Aprendi por pura observação.
A porta do JVA era um capítulo à parte na operação:
Era presa por dobradiças aeronáuticas à parte
superior do batente à direita do assento do piloto.
Abria para cima, tipo asa de gaivota para dar fácil
acesso à parte de fora do avião (que é o que realmente interessa pros caras!) em
especial ao montante da asa, onde essas “pessoas que caem” adoram se pendurar.
A porta do 182 é abaulada, e quando fechada, permanecia
travada por uma espécie de tramela com um ferrolho ao alcance do Piloto.
Quando era destravada, esse formato aerodinâmico
gerava sustentação e a porta “colava” no intradorso da asa onde havia uma
espécie de amortecedor para que ela não batesse com força.
Para fechar, era só dar um pedalzinho pro lado esquerdo,
que você turbilhonava aquela “asa/porta”, a qual descia.
Daí era só agarrar pela alça, e travar o ferrolho
no batente.
A reta de lançamento deveria ser feita sempre de
frente para o vento, e o PS (ponto de salto) sempre deslocado além da área de
pouso, de acordo com a velocidade do vento.
Isso era feito dessa forma, para o caso de uma pane
no paraquedas principal e o eventual acionamento de um “reserva”.
Naquela época ainda existiam muitos paraquedas
reservas redondos, sem dirigibilidade. No caso do acionamento de um reserva, o
vento sempre traria o paraquedista para próximo da área de salto.
A rotina era basicamente essa:
Entrava-se na reta aproximadamente 1000 ft abaixo
da altitude pretendida.
Uns 500 Ft abaixo, você pede para o PQD ao teu
lado, normalmente o mais experiente (o Jump Master) que abra a porta.
A porta se abre quase que de forma explosiva, gruda
na asa.
Barulho, e vento, frio invadem a aeronave!
No meio daquela perturbação toda, o Sujeito começa
à fazer sinais com o polegar, à esquerda e à direita, no intuito de fazer
correções de reta, até o ponto onde o salto acontece.
Nesse ponto, o Jump Master passa o indicador na
diagonal, como se fosse uma faca pela garganta, e grita:
Corta!!
Você reduz o motor pra marcha lenta, abaixa o nariz
mantendo sempre as 80 Mph.
Aquela Turba furiosa passa por você, se apoiam, se
“estruturam” já na formação pretendida, entre o estribo (aquela espécie de
grelha sobre a roda do trem principal) e o montante da aeronave.
Nesse momento o arrasto é enorme, as correções devem
ser cuidadosas.
Se você estolar nesse ponto, vai entrar em parafuso
na certa!
De repente, aquela gente toda sai da sua asa,
aquela bagunça toda acaba, e a parte legal do voo começa.
O Scan Flow
pós lançamento:
Chute no pedal esquerdo, a porta desce, você larga
o manche, agarra com a mão direita, trava o ferrolho com a mão esquerda, passa
pelos Cowl Flaps, já os colocando na posição “Closed”, sobe com a mão esquerda
um pouco até a manete de potência, ajusta as MPs para 15 polegadas, volta para
o painel, já percebendo que como você aplicou pé esquerdo para fechar a porta,
o avião já efetuou uma espécie de Chandelle sempre para o lado oposto do qual
os paraquedistas saltaram.
Nesse ponto, você percebe que velocidade já saltou
das 80 Mph do momento do lançamento, para respeitáveis 140 Mph e que o narigão
do 182 já está apontando para baixo.
Depois de alguma prática, você faz tudo isso em
aproximadamente 5 segundos.
Daí você abaixa o nariz um pouco mais, estabiliza
com 160 Mph, início da faixa amarela, o que lá em cima, à 12 ou 14 mil pés,
resulta pra início de conversa, numa razão de descida de cerca de 3000 Ft/min.
Dá pra manter isso até uns 5000 Ft em ar calmo,
depois você reduz para umas 145 Mph, com uns 1800 Ft/min no Climb, já
calculando o ingresso na perna do vento em descida.
No través da cabeceira você está à 1000 Ft, levanta
o nariz, comanda os flaps de aproximação, ingressa numa base curta, dá mais um
flapinho, final curtíssima com full flaps, pouso suave, nenhum uso de freios,
já no embalo para a bomba de combustível e para o próximo embarque.
Você então desliga tudo, passa a mão pelo bolso
atrás do banco, pega aquele pedaço de cabo de vassoura “Dripstick”, desce do
avião, pega a escadinha sobe na asa, mede o combustível, abastece, e começa a
embarcar outro bando.
Faça isso tudo por uns dois meses seguidos, que se
você não desistir do emprego, com certeza vai aprender muito!
A Loira de óculos escuros não está mais lá...
A Gordinha ainda está.
Esquece...
Não é pro teu bico!
De vez em quando, as Associações e as Escolas de
Paraquedismo faziam alguns eventos.
Nesses encontros bastante festivos, que eles chamavam de “Boogeys”, eram
promovidos cursos, venda de equipamentos, e é claro, muitos saltos aconteciam.
Oportunidade perfeita para se ganhar dinheiro com muitas
decolagens.
E é num desses Boogeys, no finado Aeroporto da
Praia Grande, que a nossa história começa.
Lá estava eu, já na descida da 17ª decolagem
daquele sábado, primeiro dia do evento na Praia Grande, admirando o glorioso
cenário litorâneo de final de tarde, imaginando que aquele fosse o último
lançamento do dia, já pensando na cerveja gelada que me aguardava.
Aquele cansaço gostoso que a gente sente quando voa
o dia inteiro...
Pousei, estacionei o avião na frente das
dependências do Aeroclube (já meio decadente na época, fundado por Alberto
Santos Dumont, uma pena...) já pronto para amarrar o JVA às estacas no gramado,
quando um Sujeito meio gordinho, todo vestido de preto, longos cabelos pretos,
barbudo, no maior estilo “Head banger”, se aproximou e disse:
- Fala Piloto!
Pausa para um comentário:
É incrível como nessas ocasiões o seu nome vira
Piloto!
Seria muito querer ser chamado de Beto?
Utopia total querer ser chamado de Cmte. Arcaro...
Quando você voa para um Fazendeiro, sempre dá a
maior confusão:
Piloto sempre é o nome do Cachorro do Fazendeiro.
Mas voltando ao que disse o Metaleiro:
- Falei ali com o “Seu” Alcyr (Alcyr Vitor Multini,
grande amigo, era o proprietário do PT-JVA) e ele disse que dá tempo de fazer
mais uma.
- Eu vou saltar, a Joana vai de “perú” só
acompanhar o lançamento.
- Tô pagando a decolagem Full!
A tal da Joana se vestia de preto.
Suas botas, suas roupas, o longo cabelo, e a
pintura ao redor dos olhos, eram de uma ausência total de frequências
espectrais visíveis.
A Joana era magra!
Todo centímetro de pele visível, não oculto pela
escuridão, era de uma palidez fantasmagórica.
Essa “Mortícia Adams” versão teenager, lá nos anos
90, pertenceria a tribo dos Góticos, ou à dos Emos, quem sabe...
Eu fui adolescente nos 80, então para mim, Joana
era Dark!
Bati o olho no relógio, cinco e quinze da tarde
ainda...
Duas pessoas, um PQD e um Perú à 12.000 Ft.
Vai ser Barbada!
12.000 Ft no nível do mar, são 12.000 Ft do chão!
Decolagem rápida, zero stress.
Vamos lá!
À umas 5 Milhas Náuticas da costa, um Monstro nebuloso,
cinzento e raivoso me aguardava.
Só notei aquele CB em cima do mar quando livrei o
circuito da Praia Grande.
Não entendi aquilo como ameaça.
Fiz a subida para o lado de Santos, só quando
estava para entrar na reta, foi que percebi o tamanho da encrenca.
De uns 5000 Ft para cima, um paredão cinza subia
bem na linha do litoral.
Estancado ali, bem no meu PS!
Será que dá?
11.000 Ft...Vai ter que ser uma reta curta...
Talvez se eu lançar e curvar logo em seguida.
Vai ser assim!
Largo o cabeludo, faço um hammerhead, e escapo do
monstro!
11.500... Entro na reta, abro a porta, o cara não
desgruda do montante, dando tchauzinho para a namorada, 12.000
Ft....Paralelamente ao paredão, à aproximadamente uns “5 metros” da lateral do
CB, o Sujeito resolve largar do avião.
Pedal esquerdo rápido, fecho a porta, volto pro
painel, e todas as “Pandorices” da natureza resolveram agredir aquele pequeno
Cessna 182 vermelho e branco.
Os fones foram arrancados da minha cabeça por uma
pancada de cabeça no teto.
Doeu, mas não deu tempo de doer.
Gravidades invertidas! Gravidades muito graves!
Ruído ensurdecedor de avião no jato de areia!
Jato de areia grossa!
Foi quando eu finalmente entendi que eu tinha perfurado
aquela parede perpendicularmente, como se fosse um prego.
Eu li em algum lugar, ou alguém tinha me dito, que
se eu reduzisse totalmente o motor e largasse os controles, talvez as coisas se
ajeitassem.
Foi o que eu fiz.
Então as coisas começaram à ficar mais lentas, me
senti mais pesado no acento, de repente, mais leve de novo...
Bati o olho no Climb, e de 1000 Ft/min descendo,
agora ele indicava uns 800 Ft/min subindo.
No velocímetro confortáveis 120 Mph se
apresentavam.
Incrivelmente, eu ainda estava à 12.000 Ft!
Esquecendo as sensações, confiando no sistema de
vácuo por “Venturi” do JVA, cedi a tentação de tentar nivelar as asas, no meio
daquele inferno de correntes ascendentes e descendentes de água em pelo menos
dois estágios da matéria:
Sólido e líquido.
As coisas estavam ficando realmente feias, enquanto
eu tentava fazer curvas para descer ao menos com uma saudável proa leste.
A única coisa que eu podia tentar, para não
complicar mais a situação evitando o terreno, seria descer em direção ao mar, e
torcer para que o teto não estivesse muito baixo.
Definitivamente, eu não tinha a mínima intenção de
chegar na “África”.
Mantive as 120 Mph, e em meio à toda aquela
turbulência, e “na ponta dos dedos” uma razão de 500 Ft min.
Motor?
Quase em Idle.
Ar quente?
Totalmente aberto!
Mais para evitar que a péssima fama dos filtros de
ar “de papelão” do 182, (Aquela que eles tinham, de que quando molhados,
poderiam estrangular a admissão e parar o motor) se mostrasse verdadeira, do
que para evitar algum tipo de congelamento do carburador.
Ou seja, alguém, ou alguma coisa que eu li em algum
lugar, me disse que eu poderia usar o “ar quente” do carburador como entrada
alternada de ar para a admissão.
Aquele meu filtro, naquele momento, deveria estar ensopado!
O ambiente escurecia.
Não sei se por causa já do horário, ou por causa da
densidade das nuvens...
O problema é que eu já estava cruzando uns 8000 Ft
em descida, e não tinha a mínima ideia
da distância à qual eu já teria voado oceano à dentro!
Nem a chuva nem a turbulência davam trégua.
De repente, o ar ficou mais calmo, mas a quantidade
de água “jateando” o avião aumentou bastante.
Naquela época eu não sabia, mas no decorrer dos
anos, eu comecei à perceber que sempre que isso acontece sempre que as
condições estavam prestes à melhorar.
Você tem o barulho aumentando, muita água ainda sem
visibilidade, daí a calmaria e condições, muitas vezes, até visuais.
Desconheço um motivo mais “científico” para que
isso ocorra. Só sei que é o que geralmente acontece.
E foi o que aconteceu!
A chuva cessou, o ar ficou totalmente calmo, e saí
numa espécie de sanduíche de nuvens.
Então percebi que havia uma mancha escura na camada
logo abaixo, que parecia uma poça de piche, no meio daquele mundo nebuloso e
cinzento.
É um buraco!
É pra lá que eu vou!
Dentro daquele buraco, eu avistei um mar de azul
cobalto, pontilhado de pequenas marolas brancas, já me dando uma ideia de como
deveriam estar os ventos lá embaixo.
Desci em espiral, a base das nuvens era uniforme, à
uns 4000 Ft, com várias “colunas” de chuva descendo até o mar escuro.
Agora eu tenho outro problema. Não sei onde estou,
e devo ter no máximo, otimistas 40
minutos de combustível.
O JVA tinha um ADF e um VOR que funcionavam bem!
Sintonizando e aproando de imediato o SAT, NDB da
Base Aérea de Santos, entre os pulos da agulha do indicador de ADF, causados
pelas descargas elétricas ainda existentes em quantidade razoável, eu mantinha
1000 Ft sobre o Oceano, completamente visual, mas em um cenário bastante
tenebroso, ansioso por chegar à costa.
Foi então que avistei as luzes do Porto de Santos.
Me lembrei de ter coordenado com a Torre Santos
(Que hoje em dia é Rádio Santos) para o lançamento.
Eles devem pensar que eu já pousei faz tempo!
Legal, Já avisto a Praia Grande, as luzes da cidade
acesas.
O Aeroporto está logo alí, naquela quadra enorme,
já na penumbra de um final de tarde nublado e chuvoso.
Pouso “nervoso” na grama encharcada do Aeroclube da
Praia Grande.
Taxi rápido já para o lugar onde as estacas já
estavam, com suas respectivas cordas para o “tie down”.
Desliguei tudo, amarrei tudo, estava fechando a
porta, muito “puto” comigo mesmo, ao mesmo tempo, de joelhos trêmulos com tudo que tinha
acontecido.
Então vejo a
turma toda vindo para o lado do avião, curiosos e preocupados com o que tinha
acontecido.
O Alcyr já tinha ligado na Torre Santos, para obter
informações.
Também já tinha ligado para avisar que eu havia
pousado em segurança.
Eu, que não estava muito de conversa, continuava
fazendo o cheque de abandono do JVA, já fechando a porta do avião como última
tarefa.
Mas o que aconteceu com você?
Porque demorou tanto?
Eu murmurava baixinho:
Hoje eu vou encher a cara!
Enquanto a vontade era de quebrar a cara dos meus
inquisidores.
De repente, apareceu o culpado de tudo, o Metaleiro
PQD! Só essa que me faltava!
O Sujeito me olha nos olhos, e pergunta já com cara
de poucos amigos:
Cadê a Joana?
O quê você fez com ela?
Putzz... Esqueci da Joana! Tranquei ela dentro do
avião!
Se ela não saltou, só pode ter ficado lá, não é
mesmo?
Abri a porta do JVA, e Joana estava lá, em completo
estado de choque, presa pelas unhas lá no fundo do bagageiro, como um felino
acuado.
Abaixo dos olhos, um misto de lágrimas e de pintura
negra escorria em listras, pela pele de uma palidez agora mais fantasmagórica
ainda.
Joana foi cuidadosamente retirada do avião, como se
fosse uma caixa cheia de cristais valiosos.
Sobrevivi para a cerveja gelada, para o churrasco,
e para voar de novo no dia seguinte.
Além disso, eu não matei Joana “a Dark”!
Acho que nem à vi!
Sei que não tenho um álibi.
Só a esqueci no avião...
13 setembro 2023
Histórias e "Causos".
Beto Arcaro
Aviação Geral LPQD Cessna 182 Skylane