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Como Tudo começou.

E então eu não fui admitido pela maior linha aérea do País...

Era a única que poderia me contratar com aquele nível de experiência.

E agora o quê?

Do topo das minhas duzentas e poucas horas de voo, abandonei o meu emprego como funcionário público em São Paulo (até dessa fonte eu já bebi!) com habilitações para Aeronaves Multimotoras e de Voo por Instrumentos “quentinhas” dentro da carteira, ali no bolso de trás dos meus velhos e surrados jeans e ... voltei pra casa, em Americana.

Acontece que na época, as outras linhas aéreas só contratavam pilotos com mais de 1500 horas de voo, oriundos da Aviação Geral Executiva.

Então, era uma boa ideia arranjar algo pra voar!

Fazendeiros e empresários da região adquiriam monomotores bem bacanas!

 Ótimos para o emprego em suas viagens de negócios!

Maravilhosos, para que um moleque de 23 anos, “Prisioneiro de um estado de espírito” (como diria Richard Bach) adquirisse experiência de voo e faturasse um dinheiro!

Tem um sujeito que era amigo do meu pai, que faz tempo que eu não vejo...

Desde a época do Aeromodelismo.

José Haas de Azevedo, o “Zito”, aviador fantástico, muitos traslados entre Brasil e EUA, dezenas de milhares de horas de voo...Ele tem uma oficina de manutenção lá no Aeroporto Municipal.

Seria uma boa ideia dar uma passada lá na Pirâmide, tomar um café, bater um papo, e assim voltar ao ambiente empoeirado das cabeceiras 12/30.

Um dia tomei coragem e apareci por lá.

O velho Zito (pra mim o Azevedo sempre foi velho) estava lá, soldando uns tubos de aço 4130.

Ainda com a máscara, ele olhou pra mim, e disse:

- Cê não é o filho do Zé Arcaro?

- Sim Seu Azevedo!

Eu sou o Zé Roberto Arcaro, o Filho!

Daí pra frente foi só alegria!

Frequentava a oficina dia sim, dia não.

Alguns traslados importantes!

Cessnas 172 entregues em Amarais, Cessnas 182 em Monte Verde, Corisco Turbo em Araraquara!

Depois desse eu fiquei 2 dias sem dormir! Que nave era essa que tinha “perfil de Mustang” em suas asas? Pelo menos era o que dizia a propaganda da Embraer, na Aviação em Revista...

Eu tinha paciência...

Um dia o Zito me disse, assim do nada, tomando uma cerveja no final de uma das tardes:

- Tem algum compromisso amanhã cedo?        

Nem precisava perguntar! Era claro que eu não tinha!

Eu desmarcaria um encontro com a Paula Toller (sonho de consumo na época!) só para saber o que existia por trás daquela pergunta!

Claro que não! Respondi, já com aquele frio na barriga.

-Tenho um cliente, você já deve ter visto os aviões dele por aqui... tem um Corisco “asa fina” e um Skylane...

-Ele tem fazenda no norte de Goiás, e está precisando de alguém que faça esses voos.

-Fiquei de te avaliar, e caso corra tudo bem, você vai voar para ele.

-Amanhã você vai comigo para Amarais, tenho que dar uma olhada no Cessna 195 do Paulo Jorge, depois a gente faz o voo no NSX.

-Como é que você está de IFR? O NSX é homologado...

Pronto! Acho que foi a primeira vez que tomei uma dose daquela mistura de alegria e pavor típica de quando eu encaro novos desafios.

Hoje em dia eu já me viciei!

Essa mistura é o que me faz sentir vivo, tanto no voo quanto na própria vida.

Na época, a sensação era intrigante.

Nem sempre boa.

-Vamos sim! Como é esse avião? Meu IFR? Ótimo! Chequei faz dois meses...

Não tomei pau né?

No dia seguinte, pulei da cama cedo, 07:00 estava no hangar.

Chovia muito! Nuvens carregadas se estratificaram durante a noite.

Teto baixo, uns 400 ft...

Na verdade eu fiquei aliviado.

Certeza que não iríamos voar com aquele tempo!

Certeza que o Azevedo não iria querer me checar para o emprego com aquele tempo!

Certeza que eu iria passear em Amarais somente para admirar um belo C-195 dentro do hangar!

Certezas...

Embarquei na Brasília verde do Zito e fomos pra Campinas.

Chegando lá, após o Mestre dar o seu veredito sobre o maravilhoso C-195 do Paulo Jorge, fomos até o “Condomínio”, onde o NSX repousava sob aquelas coberturas metálicas, bem ao lado do Aeroclube.

Pensei:

Acho que eu estou aqui só pra conhecer o avião, né? Logo após ouvir um intimidador trovão nas redondezas.

Assustadoramente, o Azevedo me deu a chave, me pediu pra abrir o avião e fazer a externa...

-Acho que faz parte do “cheque”, né?

Eu tenho 250 horas... Ele tem mais de 20.000...

Se não der pra voar, ele vai me dizer, não é mesmo?

Entrei nessa linha de raciocínio...

Chuva moderada, nuvens cinzentas baixas e densas...

“Urubu” voltando à pé pra casa!

Quinze minutos depois, estávamos checando o Lycoming do Corisco no ponto de espera da cabeceira 16.

Asfalto molhado, espelhado, refletindo o céu cinzento...

-“Ele” deve saber o que está fazendo...Assim eu espero!

- Pra onde vamos?

- Tem Viracopos aí do lado, com ILS e tudo...Tá em tempo ainda...Bom, o Comandante decide! Ele tem que decidir!

- Esse “Zevedo” é um brincalhão mesmo! Um leve e desesperado sorriso no canto da minha boca...Quando eu alinhar, ele vai abortar o voo!

Enquanto eu comandava o trem de pouso em cima, nosso “mundinho’ dentro do cockpit escurecia.

O barulho da chuva no para brisas quase suplantava o ruído do motor, em potência de decolagem!

Redução, pressão e temperatura checados!

 Olhos cravados no “Six Pack” em cheque cruzado, na cansativa sequência IAS, ADI, Giro, Altímetro, ADI, Giro... Canto de olho no Climb!

Com toda a calma do Mundo, meu sonolento “checador” me pede:

- Toma a proa 090, e sobe pra 5000...Vamos lá pros lados de Jaguariuna...

O Azevedo tinha um “moving map” de Falcão Peregrino dentro da cabeça dele!

 Eu realmente não saberia dizer quando estaríamos “pros lados” de Jaguariuna, mas chegando lá, ele começou a me pedir coisas do tipo:

- Toma a proa 090, dispara o cronômetro, sobe pra 5500, 180 graus até a 270, curva pela esquerda, 1 minuto!

- Agora desce pra 5000, volta pra 090, ainda pela esquerda, 1 minuto!

- Repete tudo pela direita agora!

- Sobe pra 6000, 360 graus de curva pela esquerda, 2 minutos no cronômetro!

- Agora desce pra 5000 de novo.

- Repete tudo pela direita, agora...

Curvas cronometradas, subidas, descidas... Nada que eu não tivesse treinado à exaustão, nos Tupis do Aeroclube de Sorocaba, alguns meses atrás.

 A chuva lá fora deu uma amainada, zero turbulência, o cinza ficou mais claro ou... seria só uma impressão minha?

- Tudo bem com você?

- Comigo tá tuuuudo bem!

- Foi ótimo, agora pode voltar pro Aeroporto.

- Ehrrr...Pra qual Aeroporto?

- Pra Amarais, ué!?

De repente a chuva apertou, a turbulência começou, tudo ficou escuro de novo!

- Mas....

Com toda a calma do mundo, mais sonolento ainda, ele me disse:

- Sintoniza a 1.170 e toma a proa da “Estação”...o que você acha?

- E desce pra 4000 ft, pra não ficar alto.

Lá fui eu pra 4000 ft, na proa da Rádio Bandeirantes AM de Campinas!

Zitão ouvindo as notícias da Bandeirantes, e me dando proas e altitudes que na medida do meu “possível cognitivo”, eu interpretava como uma prateleira de retângulos, nos quais um dos vértices terminava sempre no bloqueio da estação.

No último “lado” de aproximação de um dos retângulos eu já estava atingindo 2.500 Ft (última altitude solicitada pelo meu examinador) um pouco antes do bloqueio, já com um flapinho e trem em baixo, quando avistei a Rodovia D. Pedro I, e para o meu alívio, a cabeceira 16, logo alí, me esperando, um pouquinho pra direita, toda brilhante de tão ensopada.

O pouso foi extremamente suave, quase imperceptível.

Depois, eu aprendi com a experiência, que a gente quase sempre pousa suave com pista molhada.

 Justo quando não se deve! Aprendi que o correto, é provocar um “catrapinho” para romper a lâmina de água, assim evitando o risco de aquaplanagem.

Eu acho que tem à ver com o efeito solo, e com a temperatura da pista ser mais uniforme quando molhada.

Estacionei o PT-NSX, Corisco de “asa fina”, na frente do portão do Condomínio. Desliguei tudo, olhei pro Azevedo, todo metido, como se eu possuísse a mesma experiência dele, e disse:

- Tempinho chato hein Zitão?

- Cheguei até à pensar que não iríamos voar!

Foi então que ele levantou os olhos, e com aquele olhar sábio de tempos jurássicos, me respondeu:

- Eu também pensei!

- Só não falei nada, porque não gosto de dar palpites no voo de outros Comandantes!

Mentira!

Ele deu o palpite de como voltar pra casa, não?

Sim, muitos outros palpites seriam dados no decorrer da história.

A maioria deles forma sutil, quase que indireta.

 Palpites nunca despercebidos, nunca desconsiderados... Nunca “não agradecidos”!

Só sei que tudo começou com uma frequência:

1.170 Khz...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  • Data:

    13 setembro 2023

  • Categoria:

    Histórias e "Causos".

  • Autor:

    Beto Arcaro

  • Tags:

    Aviação Geral Causos aéreos